Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo
Nós costumamos chegar com a sutileza de uma frente fria e a voracidade de uma nuvem de gafanhotos em jejum. A disposição para negociar com os nativos é mais ou menos similar à dos alienígenas do Independence Day . Desde o oeste de Santa Catarina até os arrozais de Roraima, do litoral do Uruguai ao cerrado do Mato Grosso lá estamos nós, com o chimarrão e térmica em punho, mostrando a que viemos. E agora, meus prezados paulistanos, até aqui, terra da ex-garoa e do trânsito sem solução, nós chegamos.
Na verdade, já estávamos por aqui há tempos. Vocês consumiam nossos rodízios de carnes nem se davam conta de que este movimento era apenas a vanguarda. Os talheres já eram Tramontina ou Hércules há horas, as suas meninas vinham usando Melissas, suas construções usavam aços Gerdau, vocês voavam a mil pelo Brasil nos aviões da nossa Varig e nem percebiam que tudo isso fazia parte de um plano. Há alguns anos compram na Lojas Renner achando que aquilo tudo ali à disposição era uma forma de varejo bem sucedido. Abasteciam seus carros nos postos Ipiranga, achavam que Tio João era apenas uma marca de arroz; o bumba era quase sempre Marcopolo, mas tudo não passaria de uma estranha coincidência?
Na verdade, os gaúchos estavam apenas aguardando o momento certo para mostrar que chegaram e prontos para impor seu estilo de vida.
Comecem a se acostumar com quatro estações por ano, porque essa é uma necessidade básica de um povo que tenha apenas um assunto para utilizar nos táxis. Que passarão a ser Mille e dirigidos por um sujeito invariavelmente mal-barbeado e que sempre vota no Brizola. Seus filhos vão ter mais um item no currículo escolar, que é História do Rio Grande, e vão chegar em casa tendo aprendido a música e letra do Hino da Gloriosa Revolução Farroupilha.
O dia 20 de setembro passa a ser data nacional aqui também e suas mulheres vão ter que treinar para disputar o valiosíssimo troféu de A Mais Prendada Prenda. Vocês terão que aprender a usar expressões suaves como 'mais grosso que dedo destroncado' e 'frio de renguear cusco'. Aprendam o que é um cusco. Aproveitem logo para aprender o que quer dizer 'renguear' porque o frio logo, logo vem aí. Ao receberem um bom dinheiro de forma inesperada aprendam a berrar 'Hoje não tem china triste!'.
Desde já ninguém mais pode se referir ao Rio Grande como 'Sul', uma vez que aqui e todos os demais lugares onde estivermos passam a ser o centro do mundo. Sul agora deve ser algum lugar pro lado da Patagônia. Norte é tudo que fique acima da Via Dutra e Oeste fica para os lados da plantação de soja mais próxima. Leste fica pras bandas do mar, e se existe uma coisa que não nos interessa é água salgada e fria. Dizem que existem outras formas de mar, mas certamente isso é algo que nunca vimos.
O que eu estou afirmando é a pura e simples verdade. Completamos o círculo e nos sentimos fortes o bastante para afirmar a nossa presença aqui em São Paulo com a mesma sem-cerimônia com que ocupamos os planaltos da Bahia. Se havia alguma dúvida, basta irem até o nosso novo templo, objeto de reverência e peregrinação daqui pra frente. O Bourbon Shopping Pompéia, onde reluz, em toda a sua gauchidade, o supermercado Zaffari.
Se alguém tem dúvidas se a invasão é um fato, visitem o Zaffari. Sejam como os sapos que saltam da panela em aquecimento, e não aqueles que nada percebem até que seja tarde demais. Olhem a seção de frutas. Está no cartaz: 'Bergamotas'. Abaixo, em letras pequeninas e numa concessão aos povos ainda não reeducados, 'tangerina', ou 'mexerica', ou algo assim, em português. Na padaria, vão ver que sobre os pãezinhos está escrito o novo nome que todos passarão a usar: cacetinho. Isso mesmo. E nossas churrasqueiras na varanda do apartamento, que agora passam a ser parte obrigatória de cada residência, ou nada de 'Habite-se.
Testem o que eu digo. Vão até a confeitaria e perguntem se tem 'cueca-virada'. Vai ter. Vão encontrar Pastelina, o melhor salgadinho com gosto questionável do planeta. Nata Piá e Erva Barão.Cerveja Polar, aquela que não poderia ser vendida acima do rio Pelotas. Agora pode.
Sacudimos as sutilezas e colocamos as garras de fora. Estaremos aqui como estamos em todos os lugares. Sem fazer uma idéia muito completa do que acontece ao nosso redor, e simplesmente desinteressados do que quer que seja para saber se onde estamos faz, afinal, alguma diferença nas nossas vidas.
Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem 'O Branco', premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos 'Simples' e o romance 'O Nosso Juiz', pela editora Record. Acaba de escrever o romance 'Depois do Sexo', que será publicado em setembro pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances 'Insônia' e 'Antes que o Mundo Acabe'.
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